A pessoa jurídica como titular de EIRELI: A nova orientação da DREI (IN DREI 38/2017 – Anexo V)
A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) foi criada através da Lei 12.441/2011, que acrescentou o art. 980-A no Código Civil Brasileiro, bem como acrescentou sua previsão dentre as pessoas jurídicas de direito privado no art. 44 do mesmo Código.
Desde a sua criação, uma questão sempre foi objeto de discussão acalorada: a possibilidade ou não de uma pessoa jurídica ser titular de uma EIRELI. Tal discussão decorre da redação dada ao caput de referido art. 980-A CC, o qual dispõe que “A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.” Ao não individualizar a que “pessoa” se refere, seria possível uma interpretação literal e extensiva de que tanto pessoas físicas quanto jurídicas poderiam ser titulares de uma EIRELI.
Todavia, não foi este o entendimento que havia prevalecido, até recentemente. Isto porque o instituto da EIRELI foi concebido para organizar juridicamente a atividade econômica do empreendedor individual, permitindo-lhe, como pessoa física, criar um ente jurídico abstrato, com limitação de responsabilidade. Limitação de responsabilidade esta que, até o advento da EIRELI, só era concebida através da criação de certos tipos societários (como a Sociedade Limitada e a Sociedade Anônima). Uma forma de acabar com as tradicionais sociedades Limitadas entre dois sócios, onde um tem mais de 99% das quotas sociais e o outro menos de 1%, apenas para atender à exigência da pluralidade de sócios para criação da sociedade.
Dentre os argumentos para a restrição da constituição de uma EIRELI apenas por pessoas físicas estava o fato de que a legislação comparada que a inspirou, também limita expressamente sua criação à pessoa física, tal como a Chilena (Art. 1º da Lei 19.857/2003), a Paraguaia (art. 15 da Lei 1.034/1983), a Peruana (Art. 4º do Decreto-lei 21.621/1976), a da Costa Rica (Art. 9º, Código de Comércio), a da República Dominicana (art. 450 e parágrafo único, Lei 479/08), e Portuguesa (que através do Decreto 286/86 passou a prever o Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada), dentre outras.
O próprio Projeto de Lei que deu origem à nossa EIRELI (PL nº4605/2009) previa, em sua redação original e justificativa, a expressa limitação de sua criação por pessoa natural, sendo que em sua redação final acabou por constar a expressão “por uma única pessoa”.
O §2º do art. 980-A do CC prevê a restrição de que “A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.”. O que não demonstraria lógica restringir o direito de uma pessoa natural em constituir apenas uma EIRELI, enquanto se admitisse que a pessoa jurídica pudesse constituir quantas quisesse.
Em razão de tais ponderações, por ocasião da V Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, foi elaborado o Enunciado nº 468, sob a coordenação da Professora Ana Frazão, que expressamente concluiu que “A empresa individual de responsabilidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural”.
O próprio DNRC (posteriormente substituído pelo DREI), após a criação da EIRELI, editou a IN 117/2011, ao aprovar o Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, adotou tal corrente e dispôs de modo expresso que “Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial.”. Por sua vez, com a criação do DREI, o mesmo editou a IN 10/2013, repetindo a orientação de que pessoas jurídicas não poderiam ser titulares de EIRELIs.
Apesar de todas as considerações acima expostas, diversas medidas judiciais foram ajuizadas buscando a autorização para o registro de EIRELIs tendo como único titular uma pessoa jurídica. Algumas tiveram sucesso, com base na interpretação literal do caput do art. 980-A do CC, que não faz expressa menção à restrição de sua criação por pessoas físicas.
Some-se a este fato a crise econômica pela qual passa o país, no qual qualquer estímulo ao investimento passa a ser bem vindo (e a possibilidade de exercício individual de uma atividade com limitação de responsabilidade, inclusive por sociedades estrangeiras é, evidentemente, um deles) e temos o cenário perfeito para a mudança do paradigma.
Neste cenário, o DREI, através da IN nº38, de 02/03/2017, aprovou um novo Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Anexo V), passando a permitir expressamente que, além de pessoas físicas, também a pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, possa ser titular de uma EIRELI (item 1.2.5, “c”).
Perceba-se que não houve qualquer alteração legislativa, apenas uma nova interpretação do órgão máximo de Registro de Empresa sobre o mesmo dispositivo legal, passando a admitir a criação de EIRELIs por pessoas jurídicas, o que antes era por ele mesmo vedado.
Com absoluta certeza tal mudança de orientação passa a ser um divisor de águas quanto à criação de EIRELIs no país (sem qualquer juízo de valor quanto a ser o mesmo positivo ou negativo).
Algumas dúvidas, porém surgem com tal permissão, a começar se seria admitida a criação de uma cadeia sucessiva de EIRELIs. Para tentar corrigir esta distorção o DREI estabeleceu que “A constituição de EIRELI por pessoa jurídica impede a constituição de outra com os mesmos sujeitos naturais integrantes a titular, em respeito ao disposto no § 2º do art. 980-A do Código Civil.” (sic.). Ora, tal redação gera incertezas. Uma pessoa física sempre pôde ser titular de uma EIRELI e, simultaneamente, ser sócio de uma sociedade. Neste caso, a sociedade de que ele faz parte não poderá constituir uma EIRELI? Ou será ele que terá que extinguir a sua, caso a sociedade de que faz parte queira constituir uma EIRELI? Nesta parte, a redação foi extremamente infeliz.
Ao se admitir a constituição de EIRELIs por pessoa jurídica estrangeira (talvez o principal foco da mudança, para o estímulo do ingresso de novos capitais no País), não haveria mais o porquê de observar todas as normas para autorização de funcionamento de sociedade estrangeira em território nacional (dentre elas as constantes da IN nº07/2013 do DREI). Além de fazer letra morta os requisitos para a criação de uma subsidiária integral (sociedade anônima prevista no art. 251 da Lei 6.404/76, que tem como requisito ter como único acionista uma sociedade brasileira), pois poderia se chegar ao mesmo resultado através de uma EIRELI.
Nas palavras de Alfredo de Assis Gonçalves Neto, uma das grandes vozes contrárias à possibilidade de pessoas jurídicas serem titulares de EIRELIs, “As sociedades estrangeiras têm sistematicamente evitado pedir autorização para funcionar no Brasil. Com a flexibilização do conceito de sociedade brasileira pela Emenda Constitucional 6/1995, que aboliu a categoria de empresa brasileira de capital nacional, elas passaram a constituir sociedades no território nacional, normalmente agregando-se a um sócio brasileiro. Sendo-lhe permitida a criação de EIRELIs, fica removida a última barreira; criam uma pessoa jurídica brasileira totalmente autônoma, sem parceiros e formalmente desvinculada da matriz que, assim, livra-se de responder pelas obrigações que contrair em nosso território” (Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, 5ª. ed – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 126).
Outro ponto que Alfredo de Assis Gonçalves Neto já destacava é de que, ao se permitir genericamente que pessoas jurídicas possam ser titulares de EIRELIs, “não haveria como negar o direito de constituição de tal empresa por sociedades simples, dentre elas as cooperativas, ou por associações, fundações, partidos políticos e organizações religiosas” (op. cit., p. 126).
Tal mudança de interpretação do DREI poderá, ainda, estimular que sociedades deixem de criar meras filiais (estabelecimentos secundários, sem personalidade jurídica própria) substituindo-as pela criação de EIRELIs. Assim, cada novo empreendimento, cada novo estabelecimento, seria exercido por uma nova pessoa jurídica (EIRELI) com patrimônio e responsabilidade próprios e com limitação de responsabilidade de pessoa jurídica que é sua titular.
A EIRELI não teve a adesão que se esperava quando de sua criação pelo legislador, muito mais pela exigência de um capital social mínimo, totalmente integralizado, no elevado valor de pelo menos 100 (cem) vezes o salário mínimo vigente no país, do que pela restrição à sua criação por pessoas físicas. Como já exposto, a EIRELI foi idealizada para permitir ao empresário individual, pessoa física, a criação de uma pessoa jurídica com limitação de responsabilidade, empresário este que normalmente não possui ou não tem necessidade de tal montante como investimento inicial.
Agora, com a mudança de orientação do DREI, espera-se um incremento significativo na constituição de EIRELIs no País, que passarão a ser criadas facilmente por sociedades estrangeiras (observada a IN DREI 34/2017) e por tantas outras sociedades brasileiras, como verdadeiras “subsidiárias integrais” sob a forma de EIRELI.
Gustavo Teixeira Villatore
Mestre em Direito de Empresa pela PUC/PR
Vice-Presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR
Professor de Direito Societário da Universidade Positivo
Sócio da Katzwinkel & Advogados Associados
Advogado